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Poesias/contos/crônicas... e uns devaneios literários.



PEDIDO

 

 

 

Pediu-me a verdade

Nua e crua, absoluta...

Mas quem é capaz disso?


 

 

 

 

DO SOPRO DA VIDA AO ESPIRRO DA MORTE OU SERÁ DO ESPIRRO DA MORTE AO SOPRO DA VIDA? 

 


(Conto premiado no I Concurso Literário Cidade das Asas, da SECULT de Gavião Peixoto-SP.

Texto publicado, recentemente, no blog Textos e Livros Premiados: http://textospremiados.blogspot.com.br/)


 

 

 



“Atchim!” E o homem se fez.
“Atchim!” E o homem se foi.
Seu Carlos, não obstante, era fiel à teoria do sopro de Deus. “Deus soprou o fôlego de vida nas narinas do boneco de barro e o boneco animou-se!”. “Feito desenho animado, vovô?”. “Isso, Marininha, feito desenho animado! Mas é melhor dizer mesmo é boneco de barro, já que é isso que tá na bíblia e a gente não pode alterar nada do que está escrito, senão papai do céu castiga”, "Oxe, mas já gosta de castigar esse tal papai do céu, viu!", pensava a menina já descobrindo a chave da adivinha.
Essa irredutível crença de seu Carlos durou, contudo, até o momento em que provou, ele mesmo, sem saber, sabendo, “sem querer, querendo”, a tese da Mariana depois de velha. “Oxe, vô, essa história tá mal contada... Olhe só, acho que Deus não soprou coisa nenhuma, espirrou! O senhor sabe a potência, o poder, a gravidade, a força de um único espirro bem soltado do nariz do homem?”.
Coisa de uns 160 Km/h segundo a revista científica que ela estava lendo naquela manhã. Mais forte que um tiro, munição invisível, vírus ao ar. Vida e morte. Morte e vida. Todas juntas e misturadas num mesmo balaio misterioso de coisas curiosas, mas muito das bestas. De células de células, mundos de mundos. De ser em ser. Sernãoser.
– Marininha, deixe disso, que espirro é coisa muito da fraca, quem já se viu um causo desses!
– Não, não, voinho, não mesmo! Aí é que o senhor se engana, nunca vi coisa tão veloz e poderosa como um espirro! Assim tchááááááá!, num só atchim!
– Palavras loucas, ouvidos mocos, menina boba! Disse o velho Carlos embalando-se na cadeira de balanço em que sua mãe lhe ninava quando menino.
Lembrou-se daquela conversa no átimo do momento desesperado em que sua garganta fechava-se ao ar oxigenado. Cérebro rápido, mais até que um espirro.
“Atchim!” 
Berrou no meio da sala enquanto melecava todo o rosto e a mão do catarro desvalido. Aquilo era inesperado. Ainda houve quem dissesse do terraço da casa um “saúde!”. O seu Carlos não teve tempo de dizer “obrigado!”. Sentiu fechar-se a sua goela, pensou naquela história maldita do espirro e caiu sem vida no chão. Estava morto. Assim, finito est. Vive-se a prazo, morre-se à vista.
Tinha uma saúde de ferro. “Vovô é o baluarte da família, o peso da saúde dele nem os estivadores do antigo Porto de Recife conseguiriam erguer sem tremer na base dos pés!”, diziam os netos, principalmente a Marina. Orgulho da família o avô que na juventude ganhara o apelido de Platão, por causa dos ombros largos.
“Do pó fui feito, somente do pó, Deus sabe! Barro animado, eis o que sou”, respondia, com aquela sua alegria senil dos oitenta e tantos anos, e um toque de falsa modéstia, elevando sua concepção a um “agir de Deus”, deixando a cópula e o árduo caminho dos espermatozoides embaixo do tapete. Uma desfeita, um disparate ao eu esperma que ela tinha sido em seu momento mais vívido.
“Como, meu Deus? Como e por quê? Um homem tão saudável... Tão forte, oitenta anos de rija alma em flácida, porém firme, carne? Morrer assim, dum espirro?! Atchim e depois tchibungue?!". Berrava a dona Das Dores em ocasião do enterro no cemitério de Santo Amaro.
Pois assim foi, porque assim teria de ser? Irrespondível. E não é a morte conditio sine qua non da vida, e a vida conditio sine qua non da morte? Morte e vida assim unidas, uma a uma, de um lado o riso bom e faminto duma alegria pueril e de outro o riso farto, bêbado e sarcástico da vida finda, contas a pagar, pagando-se?
“Quê é a morte? - Pergunta sem resposta!” ainda teria dito a Marininha pro namorado recém-chegado à família Gomes, apresentado ali mesmo, na frente da tumba enorme guardada por uma estátua de platos ombros representando a saúde de seu Carlos na hora derradeira.
“Pobre coitado, sem brio na morte!”, sussurrou impáfio o velho Bernardo, velho de idade e inimizade com o seu Carlos, ido ao enterro sem ser conhecido dos parentes do morto, convidou-se a si mesmo, promessa que tinha feito pra Nossa Senhora da Conceição, no morro dela, décadas atrás, e mesmo velho, lembrava-se bem: “Só morro, minha Nossa Senhora, quando ver enterrado o filho da raputenga do Carlos Gomes!”. Agora já tinha chegado à casa dos noventa. Apressou-se para sair do cemitério, ficaria de quarentena, afinal, já que a dádiva tinha sido dada, podia ter chegado a hora de pagar ele mesmo a promessa.
Pessoas choravam quando Alcides d'Albuquerque tomou a palavra para mostrar que era o melhor genro que o sogro dele podia ter, num discurso pro finado Carlos Gomes, avô de sua namorada nova, quem dera um avô dele também? Afinal, a morte não escolhe a porta que bate...
– O senhor Carlos de Lira Gomes se foi, é verdade, porém melhor é o lugar para onde vai, darão a ele hosanas merecidas, nas alturas do céu! Foi homem honesto, pai de família, criou todos os filhos relatando a criação de Deus e, pelo que sei, teria muito prazer em me conhecer – Enxugou uma lágrima solitária no rosto fino – nos abandonou, porém não órfãos. É fato que a família está aí, dando provas do amor com que o tinham. E além do mais, não é para se chorar... Morreu? Pois aqui devemos louvar sua vida! A quantos não matou para poder fecundar o útero, como todos nós? Pois então, louvemos o que de caro ele tinha em conta – a vida! E, no mais, Laus Deo!
As pessoas não esboçaram reações, as bocas ficaram abertas e o defunto ainda tentou dar um tabefe na cabeça do novo integrante da família, quem já se viu, falar de fecundação e de matança no seu enterro! “Um crápula esse rapaz, muito corajoso pra falar isso e não levar nada! Quem já viu, louvar a vida de alguém sem respeitar a tristeza da sua morte! Um crápula! E ainda esse negócio de espermatozoide! Jesus, Maria e José! E ainda quer imitar o padre com essa patuscada de latim, ara!” Sibilou a tia Mariquinha rodando a bengala no chão.
O padre reassumiu a reza. O silêncio imperava no cemitério, só alguns pássaros voavam pra lá e pra acolá, se divertiam festejando o morto. Havia ainda quem continuasse encarando, fuzilando com os olhos o Alcides d'Albuquerque, "esse tal namorado da Marininha", lembrou tia Mariquinha, e foi por isso que Marina depois pronunciou umas palavras, que reproduziremos aqui:
– Vovô era forte. E foi forte mesmo que se foi. Um espirro? Quem dera! Eu tinha falado pra ele antes, e ele não tinha acreditado! Mas o importante é que ele foi como Deus teria feito ele vir... No mais, morte e vida, vida e morte, que importa? A ordem dos fatores não altera o resultado! Bem disse o Alcides, vovô Carlos foi grande e devemos mesmo louvar a vida dele, o que ele nos deixou, mesmo agora, na hora de sua morte... E no mais, se se foi por um espirro, que dizer? Foi Deus quem quis assim! Deus seja louvado!
"Amém!", disseram muitos, agora concordes.
“É, bem razoável... Que menina essa, falou tudo!” Entusiasmou-se tia Mariquinha batendo palmas com todo mundo.
O Carlos Segundo, pai da Marina gostou muito de saber que aquele discurso que estava sendo aplaudido, de sua filha, tinha nascido, primeiro, na mente do genro. "É como dizia painho, - pensava ele - primeiro do barro Deus fez o homem, depois da costela, Deus fez a mulher, então louvo primeiro ao homem, louvo depois à mulher". E quanto ao tal Alcides, era um bom rapaz, tinha prestado a honrosa homenagem ao velho Carlos Gomes.
– Parabéns, amor, você falou muito bem. Disse Marina, depois, ao Alcides.
– Obrigado, amor, também achei. Mas obrigado também por ter salvo o meu discurso, o povo parecia não ter entendido! Mentes menores!
E beijaram-se em brinde ao sopro de vida que tinha ganho seu amor na casa dos Gomes.
O defunto quis fazer das tripas coração pra poder reencarnar, só pra dar um tabefe nesse presunçoso namorado de araque, mas recordou-se não ter mais tripas nem mesmo coração. “Parece até um ianque!”. Ouviu Gabriel, no céu, seu Carlos dizer.

 

*

* *


Alguns dias depois do funeral de seu Carlos, uns meninos duns tais Martins levavam a notícia a toda a família:
– Vovô Bernardo acaba de falecer... Deu um espirro enorme e sucumbiu dele mesmo. A maldita gripe aviária! 
Os dois inimigos, mortos da mesma morte morrida, viraram amigos no céu e, satisfeitos com aquele desfecho, sopro de vida de sua própria amizade, deram hosanas à gripe aviária!
Laus Deo!
 
 
 
 
 
INDIFERENÇA

(Poesia publicada na 7ª Edição do Caderno-Revista de Poesia de Natal (RN) "7Faces" em 2013).

 
Cidade de vidro cinza
Poeira de fuligens
Carros, bolsas, gente,
Horas,
Agamenon engarrafada
D’outro lado da via
Pau-brasil
Desabrochando
Em rosa

 

 

 
SURPRESA

(Publicada em Portugal, 2013, na Revista de Poesias "7Faces", RN, 2013 e na Revista Literária "Varal do Brasil" em 2013).

 

 

Hoje olhei aquele menino da foto...
Álbum antigo, baú de espantos...
Menino peralta,
macacão vermelho
gritando alegrias...
 
Olhei tão feliz menino
indagando os porquês de felicidades tamanhas.
Vir ao mundo?
Ah, menino tolo, nada sabes do mundo!
E’além do mais, não é para tanto o mundo!
 
E disse àquele menino da foto:
“sossega, pequeno, o mundo é das caras tristes!”
E aquele menino respondeu-me
Com risos ainda maiores...
 
Aquele menino da foto
Depois soube era eu...

CADERNO AZUL

 

Suas páginas brancas

engoliram-me...

DECISÃO
 

Intime-se a senhora Capitu

para falar nos autos

sem a qual

Non Liquet

O LEGALISTA[1]

 

(Texto publicado, recentemente, no blog Textos e Livros Premiados: http://textospremiados.blogspot.com.br/)

 

 

“Que as leis sejam, portanto, inexoráveis, que sejam os seus executores inflexíveis (...)”

Marquês de Beccaria.

 

 

 

 

 O Dr. Antenor de Barros Gouveia era um legalista lato sensu! Orgulhava-se disso. Para ele, ser assim rotulado era como receber uma insígnia de bravura e excelência. “Excelência...”, dizia ele, “verdadeiro tratamento digno a um magistrado de meu quilate!”. O orgulho do Dr. Gouveia não se limitava a isso não, como ele mesmo dizia constantemente, sua soberba era tão-só “a soberba da lei!” e, ele, humildemente, nada mais era que a bouche de La loi!

Não se engane, caro leitor, pois esta era somente uma das pérolas do Dr. Gouveia. No seu fórum a lei era dura, mas era a lei, como sempre gostava de dizer ao proferir as sentenças de condenação (adorava as sentenças de condenação!): “Agora, só podemos admitir, que a despeito de tudo e todos, ‘dura lex sed lex’”. Aquela jóia fazia vibrar o Ministério Público e bufar de raiva os causídicos, que tinham lástima por “tão pueril magistrado”, como diziam. Tudo isso enquanto os réus nada entendiam e perguntavam aos seus representantes:

- O que isso significa, doutor?

- Significa que o juiz é um babaca, vamos ter de recorrer...

Malgrado todas essas pérolas, o Dr. Gouveia era um exímio funcionário do Estado. Mais que isso, ele era a personificação do Estado na administração da Justiça! Gostava muito, desde a faculdade, da expressão Estado-juiz, era o que ele era. Como não só funcionário, mas como representação do próprio Estado, sentia o peso de sua responsabilidade...  Pasmem: Costumava dizer orgulhoso para todos os seus amigos da turma (no fórum) que já bastava o peso de seu merecido salário ao erário estatal, não iria solicitar ganhos extras, como auxílio transporte por exemplo.

- Qual o quê! Desabafava um de seus colegas. Os deputados cobram até auxílio paletó, por que nós não podemos solicitar auxílio transporte que além de tudo é extremamente necessário?

- Por que seria tão necessário assim? O colega pode nos trazer um argumento racionalmente verdadeiro e demonstrável? Interpelava o Dr. Gouveia.

- Ora qual, homem! Precisamos da razão para isso?! Somos juízes da vara criminal! O que tu queres de tua vida? A pena de morte por negligência?!

- Pois então, Gouveia? Diziam os demais reticentes.

- Vocês todos são uns frouxos! Maus pernambucanos!

- Maus pernambucanos estão nas ruas pensando nos crimes que vão cometer, meu caro! E você vai acabar se matando!

- Meras palavras retóricas... flatus vocis! Você poderia me dizer o porquê de ainda continuar utilizando a maldita retórica Cavalcanti?

Aquele debate geralmente encerrava-se ali...

 

*

*         *

 

Certa feita, ao sair de seu casarão no bairro de Apipucos, o Dr. Gouveia chamara por telefone um táxi ao qual pagaria com o dinheiro de seu próprio bolso. “Estás vendo, filho?” – dizia ele para o pequeno que (ainda) queria ser igual ao pai quando crescesse – “cumpre ser exemplo. Cumpre ajudar o Estado! Irei pagar com minha própria algibeira!”.

Dentro de instantes chegava o táxi. O porteiro lhe avisara. Dera a ordem. O enorme portão se abrira. Ele saiu. Entrou no táxi.

- Bom dia. Siga para o fórum do Recife. Agora, o mais depressa que puder, contudo, respeite as leis de trânsito, viu!

O taxista olhou para ele através do retrovisor inquietamente. “É ele?” perguntara o taxista para si. Ele jurava que ali, em seu veículo, finalmente e como nunca havia pensado, estava o velho juiz Gouveia! Aquele “Agora” e o apego idiota ao legalismo haviam contribuído muito na identificação do sujeito. Tinha muito chão até o fórum que ficava na ilha de Joana Bezerra, então poderia observar melhor...

O nobre magistrado observava a paisagem com seu resoluto ar de legalista. Ar de um indivíduo cheio, não só de si, mas de todo o poder do Estado. Um poder que se limitava à pronúncia da lei, claro. Dura, mas plena e inflexível. Afinal, “com um sistema penal tão frouxo alguém teria de ser inflexível!” Era o que dizia...

De repente, o silêncio da viagem fora quebrado:

- O senhor é o Dr. Antenor de Barros Gouveia, juiz de primeira instância, da terceira vara criminal de Recife, não? Que está prestes a pular para o Tribunal, para assumir o gabinete que vagou junto ao Dr. Melo Neto, acertei? Disse o taxista com voz mecânica.

Gouveia sentiu um arrepio tomar-lhe o corpo. Um rubor esquisito parece ter tomado seu tórax, o fato é que, do nada, estava com uma leve dor-de-barriga. Era acostumado a enfrentar imprevistos em seu gabinete, bem como na sala de audiências. Agora, estava fechado num táxi, cujas travas estavam bem cerradas. Fez-se de desentendido, mecanicamente quase...

- Doutor? Não me ouve? Com todo o respeito, ficou surdo depois de ouvir tantas presunções de inocência?

- O que o senhor quer? Desabafou Gouveia, esbaforido.

- Calma, doutor, muita calma nessa hora! Eu apenas lhe conheço...

“E como!”, reconheceu espantado o magistrado ao lembrar-se de ter ouvido um resumo de sua história profissional pela boca de um total desconhecido. Mas acalmou-se logo, ele não o conhecia, mas, como cidadão, conhecia bem o Estado. “Ah, Antenor, seu tolo! Ele o conhece, pois és representante do Estado..., te esquecestes de tamanha pérola?! Além do mais existem os Diários Oficiais para figurar nosso nome aos olhos dos outros!” disse para si o juiz, acomodando-se no banco traseiro do automóvel.

- Eu fui injustamente condenado pelo senhor há uns doze anos atrás... Continuou o taxista. Injustamente duas vezes. Uma porque era de fato inocente, duas porque a pena foi bastante pesada. O senhor parecia excitar-se do alto de sua tribuna ao falar aquela baboseira em latim... meu advogado concordou comigo: o senhor fora um grande babaca. Hoje, não sei mais como andam as coisas da Justiça, apenas conheço todo o código penal, tarefinha de casa de alguns presos decentes lá do presídio, sabe? E, pelo que sei, ao menos uma causa de diminuição de pena poderia ser administrada ao meu caso... Tinha menos de 21 anos, na época! E ainda mais, não havia roubado nada, aquele policial miserável é que colocara a arma na minha bolsa após negar lhe pagar pela dispensa da blitz!

- Na verdade, meu caro – disse com voz terna e superior, o juiz –, chama-se circunstâncias atenuantes o que o senhor quis invocar através de seu representante legal. No entanto era pura retórica vazia, tese de defesa...

- Para os diabos com a nomenclatura doutor! Eu era I-NO-CEN-TE-!   

Disse taxativo o taxista.

- Não podia nunca incorrer, com minha conduta ingênua, no 155!

- Na verdade, você incorreu no 157, meu caro...

- Para a merda com a verdade, doutor! Que importa o artigo quando o estrago foi irreparável!

Naquele instante Gouveia sentiu um torpor terrível... Começara a suar, afrouxou a gravata como nunca fizera frente a estranhos, chegara mesmo a desatar seu nó. Dentro de momentos iria morrer, ele sentia... “Ele vai me matar; ele vai me matar” era só o que pensava.

- Por gentileza!!!

Gritou quase como um doido.

O taxista se assustou.

- Diga, doutor...

- No próximo cruzamento retorne uma rua. Desejo tomar de alguns papéis em casa de minha filha.

Aquilo, claro, era tão-só uma desculpa para ver se o taxista era fiel ao itinerário do atual passageiro, ou se queria de fato matá-lo.

Os instantes até que o carro se aproximasse do cruzamento foram de terror.  O Dr. Gouveia se esbaforia, suspirava como um tubérculo. Sentia-se morto antes do tempo. E o pior, até então o maldito taxista não cometera nenhuma ação típica, antijurídica e culpável! Ele era por enquanto inocente de qualquer acusação! Os camaradas do fórum estavam certos! Ah, Cavalcanti, seu retórico tolo!

O sinal abriu. O carro fez rápido retorno e tomou o caminho assinalado pelo nobre Dr. Gouveia. Ele, estático como quem vê um vulto, estava trêmulo, gelado como um iceberg!

- O senhor está bem, doutor...? Onde fica a casa onde o senhor quer parar? ...Doutor?

- Sim?! Respondeu dificultosamente o magistrado.

- O senhor está bem? Não foi ao fórum dirigindo seu carro por estar doente?

- Claro..., que estou bem. Não fui por estar cansado. Para onde estamos indo mesmo? Ah, sim! Faça o seguinte, retorne para o fórum. Eram inúteis tais papéis!

Após alguns longos minutos no trânsito recifense, o táxi enfim chegara ao fórum. Gouveia sentia-se como um claustrofóbico dentro daquele veículo. Pagou a corrida. Fitou o taxista com seu olhar de águia velha e agradeceu.

- Por que o senhor me agradece, doutor? Está me pagando! Cumprimos nossa relação obrigacional! É pura gentileza para com um ex-presidiário, é isso?

- Obrigado, em nome da sociedade, meu rapaz, por ter se regenerado. Você deu provas disso hoje.

- Quando se está limpo, doutor, não se precisa tomar banho!

Ao entrar no fórum a primeira coisa que fez foi solicitar o auxílio transporte munido de motorista particular de sua confiança. Até porque não tinha condições de dirigir, estava sempre cansado.

Passou a demorar-se bastante na lida com os casos. Procurava diminuir as penas de qualquer modo. Sempre fazia a analogia in bonan partem, sempre aplicava a Lex mitior, a Lex tertia. E prestava bastante atenção nas excludentes de antijuridicidade!

Assustados, seus colegas se reuniram para almoço. Dr. Cavalcanti de Souza Santos, como sempre tinha o hábito de lhe inquirir primeiro, disse:

- Ora qual, homem! O que se passou com você? Estava pensando na morte da bezerra foi? Justifique para os amigos tamanha mudança!

Ouvindo aquilo, Dr. Gouveia meneou a cabeça e, com suave e assustadora voz, disse:

- Dura Lex..., sed LATEX, meus caros amigos! Os tempos voam, as coisas mudam! 

 

 

 

 

[1] Conto vencedor no Concurso Literário Nacional de Contos da Associação Nacional dos Escritores – ANE, em comemoração aos seus 50 anos, Brasília, 2012. Lançamento: abril/2013.

PUBLICAÇÕES NO CADERNO AZUL

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